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Introdução de Enquadramente Histórico à Entrevista de Rui Lourido

Na resposta às questões colocadas pelo Jornal Ponto Final, de Macau, o presidente do Observatório da China fez uma introdução histórica para enquadramento da temática  dos direitos humanos na China. Não tendo esta introdução sido publicada, mas por considerar-se relevante para a percepção da evolução do exercício dos direitos humanos  na actualidade, apresentamos de seguida a referida introdução:

"Tenho todo o prazer em responder, a título pessoal, visto o Observatório da China ser uma associação de académicos e pessoas interessadas nos estudos multidisciplinares sobre a China e no conhecimento da civilização chinesa que podem ter, individualmente, diferentes perceções. No discurso político é usual utilizar-se o tema dos direitos humanos, como arma de arremesso politico contra a China, esquecendo o quadro geral e o tempo longo no desenvolvimento histórico das relações entre o Ocidente e a China. Não sou advogado dos líderes chineses, contudo, numa perspetiva histórica das relações entre a Europa e China, e para sermos sérios e justos na análise deste tema, necessitamos enquadra-lo no contexto das relações entre os países ocidentais e a China. Pelas suas consequências nefastas para os países asiáticos, e para a China em especial, destacam-se as responsabilidades dos países ocidentais na promoção das guerras dos séculos XIX e início do XX, nas invasões e humilhações impostas à China, tendo como objectivo principal o desenvolvimento da economia dos países ocidentais (logo das suas elites) à custa da economia chinesa e indiana. O sistema de comércio marítimo de longo curso com a China baseou-se genericamente, até à Guerra do ópio, fundamentalmente, na importação pelos países ocidentais, de sofisticados produtos manufaturados, com grande valor incorporado (sedas, porcelanas, chá, entre outros), sendo comprados em troca de ouro ou prata. Apesar dos exorbitantes lucros propiciados pelo comércio com o Oriente e com a China em particular, daqui resultava um défice na balança de pagamentos para os países ocidentais. O historiador português Vitorino Magalhães Godinho refere que, a China foi o maior sorvedoiro de prata da Idade Moderna. O economista germânico-americano André Gunder Frank defendeu, que a economia do mundo até à Guerra do ópio teria sido globalmente impulsionada pela economia chinesa, logo seguida da indiana e como exemplo diria que, se se pudesse comparar a um comboio, o seu motor teria sido a economia chinesa.

Os líderes dos países ocidentais só conseguiram inverter a autossuficiência deste sistema mercantil chinês autocentrado, e desequilibrar a balança de pagamentos a seu favor, pela imposição, através das guerras, do comércio ilegal do ópio como moeda de pagamento para a importação ocidental dos preciosos produtos chineses. Em consequência, da vitória militar, os países ocidentais impuseram um controlo sobre a economia chinesa e a drenagem das suas riquezas para o Ocidente, agravando e acelerando as fragilidades inerentes à sociedade chinesa, e determinando a sua rápida desagregação e decadência político, económica e social. Todo este contexto, conduziu à multiplicação das inevitáveis vagas de fomes e de drenagem de mão-de-obra servil chinesa (naquela época, chamado de comércio de cules, realizado com a complacência das autoridades imperiais chinesas, principalmente para colónias europeias e para o continente americano). Guerras e comércio desigual impostos pelo Ocidente à China, contribuíram determinantemente para o desenvolvimento das economias e riqueza das elites ocidentais, mas impuseram direta e indiretamente um severo agravamento das condições de vida da população chinesa, sem qualquer respeito pelos direitos humanos.
Ainda do ponto de vista histórico gostaria de referir um contributo, pouco conhecido, da civilização chinesa para a perceção europeia do que viriam a ser os direitos individuais, na sociedade da Idade Moderna europeia – o mérito pessoal, baseado no conhecimento e competência, aferido em exames públicos em todo o império chinês. Ao contrário do que aconteceu na europa, geralmente até ao dealbar do século XIX/XX, na china todos os candidatos a um cargo da administração do império, independentemente da sua origem social, tinham de fazer um exame para poderem ser nomeados. O facto de na China os letrados estarem no comando da estrutura administrativa do império, a respetiva ascensão social,juntamente com um sistema de aplicação da justiça orientada por legislação civil, aplicada com maior critério universal que no ocidente, que se distanciava muito lentamente da sociedade de antigo regime, foram alvo do elogio de muitos dos viajantes portugueses e europeus da idade moderna, vindo a influenciar o pensamento dos iluministas franceses, como Voltaire ou Montesquieu.

Foi com os governos da República Popular da China, que a herança da situação de exploração de recursos naturais e humanos da China, pelas potências ocidentais, seria invertida e começaria um processo de aquisição de direitos civis e humanos. Foram proibidas tradições discriminatórias, como a deformação artificial dos pés das mulheres abastadas. Decorrente do processo de extraordinário desenvolvimento económico, assiste-se à ampliação de um maior número de direitos cívicos. Do acesso a melhores condições de vida: da ultrapassagem das piores situações de carência alimentar (e 300 milhões de chineses conseguiram a sua ascensão à classe média), maior acesso a serviços de saúde, à educação e a bens culturais. Por outro lado, inicia-se igualmente um processo de ampliação da consciência da importância de conciliar os interesses públicos e da administração central, com os direitos individuais, humanos e cívicos.
Neste contexto partilho da conceção, de que é aos cidadãos chineses e suas autoridades que compete decidir sobre a forma de ampliar os direitos humanos na China. Apesar de vivermos num mundo cada vez mais globalizado e algumas influências exógenas se fazerem sentir positivamente nos nossos países, penso que a defesa efetiva dos direitos humanos é um processo endógeno a cada sociedade, que depende da consciência cívica e da correlação de poder das organizações da sociedade civil, bem como do processo de desenvolvimento económico e social."
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