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O direito à opinião e a liberdade de algumas minorias ainda preocupam, mas as autoridades do Continente têm realizado esforços para evoluir num dos temas mais delicados da agenda: os direitos humanos. O argumento é do português Rui D’Ávila Lourido, presidente do Observatório da China, que faz questão de realçar que também existem atropelos claros no Ocidente.
Pedro Galinha
- Assistimos hoje a uma inversão no discurso sobre os direitos humanos na China por parte dos líderes ocidentais?
Rui D’Ávila Lourido – A questão pressupõe que aceitemos que os actuais líderes ocidentais têm legitimidade para dar lições de moral à China. Partilho da perspectiva dos que têm dúvidas porque o próprio Ocidente – devido à acção recente destes líderes ocidentais – assiste ao retrocesso dos direitos humanos básicos, como o direito ao trabalho (e a limitação da actividade sindical em sua defesa), à alimentação e habitação condigna, bem como à saúde e à educação tendencialmente gratuitas, direitos inseridos em algumas das constituições de países europeus. Por outro lado, muitas das grandes multinacionais ocidentais que transferiram a sua produção para a China não aplicam no interior das suas fábricas chinesas os mesmos direitos cívicos e humanos que possuem os seus empregados nas delegações e sedes localizadas nos países ocidentais.
- São contradições a mais?
R.A.L. – Afigura-se legítimo pensar que os governos ocidentais quando pressionam a China para adoptar um sistema político do tipo ocidental não o fazem unicamente por consideração para com o cidadão chinês, mas também por estratégia política. Por pensarem que a democracia parlamentar poderá fragilizar a coesão política da China, propiciando a sua fragmentação regional e, dessa forma, enfraquecer a presente ascensão económica e a influência da China no mundo do século XXI. Tentam ainda prolongar o actual modelo unipolar, dominado económica e militarmente pela América do Norte, e evitar a sua substituição por um mundo multipolar, onde tenham de aceitar partilhar responsabilidades de liderança com a Ásia (com a China e a Índia), com a Rússia e com a União Europeia. Dito isto, num âmbito multilateral e de respeito mútuo, considero importante o diálogo e toda a reflecção sobre a melhor forma de aprofundamento dos direitos humanos, quer na China, quer no Ocidente. Recordemos que Dilma Rousseff, a presidente do Brasil, referiu em resposta a uma pergunta sobre direitos humanos na China que ‘todos temos problemas de direitos humanos’.
- Uns devem ser os “polícias” dos outros?
R.A.L. – Nos Estados Unidos e na Europa assiste-se a situações de marginalização e algumas vezes de agressão xenófoba, contra comunidades étnicas minoritárias. Por exemplo, na primeira semana de Agosto, em França, vimos uma comunidade de cidadãos europeus, ciganos de etnia romena e búlgara, ser expulsa pelo governo democrático de François Hollande, contra as suas próprias promessas antes de ser eleito. No âmbito do diálogo multilateral sobre direitos humanos é admissível a China ser confrontada, nomeadamente, com a frequente punição de chineses que têm opinião política divergente ou sobre a limitação do direito de certas minorias. Mas a União Europeia também deve ser questionada pela China sobre as referidas limitações de direitos humanos a cidadãos europeus.
- No seio da União Europeia, existem encontros específicos para discutir a questão dos direitos humanos na China. É a melhor opção para manter vivo este dossier?
R.A.L. – Talvez a maior compreensão da complexidade do tema tenha levado a privilegiar os espaços próprios, entretanto criados para analisar os direitos humanos. Não esqueçamos que, no contexto das relações Europa-China, o diálogo sobre direitos humanos foi lançado em 1995 e formalizado por encontros oficiais bilaterais, tendo-se reunido maioritariamente duas vezes por ano, intercalando Pequim e Bruxelas como locais de reunião. Têm-se desenvolvido seminários com especialistas em questões específicas como a pena de morte e a transposição de pactos internacionais. Adicionalmente, vários projectos de cooperação prática têm sido desenvolvidos, nomeadamente, para a formação de advogados.
- Nota desenvolvimentos em matéria de direitos humanos na China?
R.A.L. – Tem sido notável a evolução da posição conciliatória da China, revelando maior cooperação nas áreas técnicas, nomeadamente, em relatórios dos Pactos das Nações Unidas, reforma judicial, assistência legal, entre outras. A 29 de Maio, reuniu-se em Bruxelas a 31ª ronda que debateu o tema geral da punição criminal e das condições de limitações à liberdade individual. O comunicado da reunião refere que a União Europeia e a China analisaram questões como vigilância de domicílio, prisão domiciliária, condições de detenção em prisões. A China apresentou a sua preocupação em relação a questões de xenofobia e de discriminação racial existentes na Europa e a nível internacional – tendo a Europa explicado as suas políticas de combate ao racismo e xenofobia. Por sua vez, a União Europeia levantou algumas questões sobre a situação na China face às minorias étnicas – tibetanos, uigures e cristãos –, ao tratamento de refugiados da Coreia do Norte, ao respeito pela lei, à liberdade de expressão e ao respeito pela sociedade civil. A União Europeia apresentou ainda uma lista de casos individuais de limitação da liberdade, dos quais a China deu resposta a 25 (identificados na lista apresentada em 2011).
- Ao nível das Nações Unidas há também novos passos?
R.A.L. – A União Europeia e a China trocaram perspectivas de cooperação com o Concelho para os Direitos Humanos das Nações Unidas e com o Gabinete do Alto Comissário para os Direitos Humanos das Nações Unidas. Recordemos ainda que a nova postura da China, de envolvimento e empenho, levou à sua eleição para integrar o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas [órgão de apoio à Assembleia Geral].
- Podemos falar num maior envolvimento chinês nas principais organizações internacionais?
R.A.L. – Especialistas atentos, como Alastair Johnston ouLuís Cunha [entrevistado em Julho pelo PONTO FINAL], têm reconhecido que a China se tem envolvido profundamente nas organizações internacionais, assimilando os específicos mecanismos e enquadramentos teóricos e jurídicos, contribuindo para o renascimento e reforço do papel dessas organizações no quadro internacional multilateral (ONU, ASEA, etc). Neste contexto, partilho da opinião de que a plena integração e interiorização da cultura institucional associada às organizações multilaterais pela China, transforma-a paradoxalmente numa defensora desse “status quo” internacional.
- De volta à União Europeia, como podemos descrever a relação que existe actualmente com a China?
R.A.L. – As relações da Europa com China foram estabelecidas em 1975. Parece ser uma relação construtiva, que tem sido muito proveitosa para ambas as partes. A China tem privilegiado a sua parceria estratégica com a Europa, o que tem permito diversificar a respectiva interdependência de ambas para com os Estados Unidos. A China aumenta o seu investimento na Europa, relativizando o risco da sua excessiva anterior aplicação de capitais na dívida pública dos EUA; a Europa respira de alívio perante a entrada de capital fresco na sua economia e reforça a sua influência política e estratégica na Ásia.
- Em termos comerciais também é bastante proveitosa?
R.A.L. – A União Europeia continua a ser o maior parceiro comercial da China e a sua principal fonte de tecnologia. Já a China é o segundo maior parceiro mercantil da Europa, logo após os Estados Unidos. A maioria deste comércio refere-se a produtos manufacturados e industriais. Entre 2009 e 2010, as exportações europeias para a China aumentaram 38 por cento e as exportações chinesas para a Europa aumentaram 31 por cento. Em 2011, a Europa exportou para a China, só em mercadorias, 136,2 mil milhões de euros e importou 292,1 mil milhões de euros da China. Na 3ª ronda do Diálogo Estratégico de Alto Nível entre a Europa-China, em Julho deste ano, os dois actores decidiram ampliar a cooperação internacional e tratar as suas divergências de uma maneira construtiva. A China reafirmou o apoio à integração europeia e aos esforços da Europa para sair da crise e a União Europeia reafirmou o apoio ao desenvolvimento pacífico da China e ao respeito pela sua soberania e integridade territorial.
- O embargo de armas, em vigor desde a repressão dos protestos da Praça Tiananmen (1989), desestabiliza esta relação?
R.A.L. – Sim. Na sequência do reforço do envolvimento da China nas organizações multilaterais e em particular com a Europa, a China tem pedido o levantamento do embargo de armas, argumentando que a sua manutenção é discriminatória, muito intrigante e preconceituosa. Duas posições se confrontam na União Europeia: a corrente de opinião mais pragmática, segundo a qual o embargo deve ser levantado, defendida por alguns países como França, Áustria, Bélgica, República Checa, Grécia, Itália e Reino Unido; o bloco opositor que integra Parlamento Europeu, Alemanha, Dinamarca, Holanda e Suécia. Contudo, sob certas condições, os vários países concordariam em levantar o embargo e a Alta Representante da União Europeia para os Assuntos Estrangeiros e Segurança, Catherine Ashton, já defendeu que é um grande impedimento a um maior desenvolvimento da cooperação nos assuntos internacionais e de segurança.
- Como é que a China tem contornado esta questão?
R.A.L. – O embaixador da China junto da União Europeia, Song Zhe, referiu que o embargo tem como consequência um mais rápido desenvolvimento da tecnologia chinesa e a aquisição de armamento russo. Os Estados Unidos lideram a enorme pressão internacional sobre a União Europeia para manter o embargo, associados ao Japão, com vista a manter o domínio geoestratégico e militar norte-americano no plano mundial e, em especial, no Mar da China (Taiwan) e Pacífico. A corrente europeia de opinião mais pragmática argumenta que o levantamento do embargo reforçará o papel da Europa num mundo multipolar.
- Não há motivos para temer o investimento militar chinês?
R.A.L. – Os investimentos têm tido um objectivo defensivo e limitado geograficamente ao mar da China (criação de capacidade defensiva numa linha de protecção que ligaria as ilhas Aleutas, norte, ao Bornéu, sul, possivelmente só operacional por volta de 2020). Vários analistas ocidentais destacam que o investimento militar chinês continua muito longe de ser uma ameaça para o Ocidente e muito menos para o poderio militar dos Estados Unidos, que está 30 a 50 anos à frente da situação das forças militares chinesas. Há três factores principais para esta tese. Em primeiro lugar, a China tem como interesse nacional e vital a estabilidade do sistema económico mundial. A estratégia oficial chinesa não é expansionista e baseia-se expressamente nos princípios de desenvolvimento pacífico e harmonioso, e de afirmação de um mundo multipolar. Cresceu o envolvimento chinês nas várias instituições multilaterais, nomeadamente nas Nações Unidas. Nos últimos anos, a China tem sido o maior contribuinte para as missões de observação e de paz, de entre os cinco membros do Conselho de Segurança da ONU. Em segundo lugar, a China tem mantido a mesma percentagem de investimento em defesa, cerca de dois por cento do seu PIB, apesar do crescimento económico que regista. Já os EUA, quase sem crescimento económico, investem mais do dobro dos chineses (4,7 por cento). Em terceiro lugar, as forças militares chinesas actuais não têm real experiência de combate.
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